Um sino badala. Cachorros latem incessantemente em suas casas. Nova música toca no rádio. Uma vela é acesa. Um perfume é desperdiçado. Uma criança chora. Moedas caem no chão. Um orgasmo. Um tombo. Um telefone que toca. A música na igreja. Um espirro. Um novo prato. Um brinde. Dois soluços. Um pano de mesa manchado. A luz que acaba. Um pingo de chuva. Um pingo de esperança. Um pingo. Uma conta que chega pelo correio. A notícia de morte que vem pelo e-mail. A estrela que se apaga. O lanche no chão. O leite derramado. O tiro. Uma nova invenção. Minuto de pecado. Uma esmola. Um NÃO. Um nariz que escorre. Um homem de porre. Uma batida de aplauso. Um batuque de pandeiro. A pulga que morre. Barulho do sapo. Barulho do grilo. O engraxar do sapato. Mais um novo filho. Um acidente. A lágrima desce.
Hora do sol se pôr, dando um efeito de sépia que se estendia por toda a minha rua. Uma folha seca acabava de cair, por causa do impacto de um sabiá que vinha, cantando, pousar no galho. Início de outono.
Eu havia chegado da minha viagem semanal, já com as costas cansadas de carregar a mochila que desta vez trazia um peso a mais: um bibelô. Entrei pela sala, que, como de costume, tinha a televisão ligada, e fui para o quarto de mamãe.
Dormia como uma pedra. Aliás, dormir era uma das coisas que ela mais fazia nos últimos dias. A doença recém descoberta a deixava muito cansada.
- Mamãe?
Ela abriu os olhos, meio confusa, mas logo percebeu que era eu que acabava de chegar. Deu-me um abraço, aqueles de mãe, e falou das saudades. Eu só tinha ficado dois dias fora de casa.
Tirei o bibelô da mochila e presenteei mamãe. Comprei-o num mercadinho da cidadela, simplesmente por ter visto naquele pequeno objeto, um pouco “maternal”. Ela ficou bem feliz, e falou-me que já teve um daqueles tempos atrás, mas que por um acidente doméstico, havia se quebrado!
Ela pegou a miniatura e foi levando para o armário da sala. Um armário de madeira bem velho, mas conservado, que mamãe insistia em mantê-lo na sala. Tinha um compartimento com duas prateleiras que eram protegidas por duas portas decoradas, trancadas à chave. Nunca havia me perguntado o que havia ali dentro! Foi quando vi uma um infinito de objetos.
Miniaturas de todos os tipos, pequenos objetos de decoração, bibelôs, lembranças de viagens... Tudo dentro daquele armário. Naquele instante, me vieram à cabeça as lembranças dos objetos, que eu já não via a um tempo devido ao fato de estarem trancados no móvel.
- E por qual motivo a senhora deixa tudo guardado?
E ela me respondeu em meio a pausas e tosses:
- Cada um destes objetos me remete a um momento de minha vida. Não sei se chega a ser materialismo, mas eles são muito importantes para ficarem decorando a casa! Prefiro guardá-los aqui, como boas recordações. Recordações, umas nem tão boas, mas, recordações. Cada vez que venho abri-lo, é como se o armário dispusesse de todas as emoções que um dia eu já vivi, e é só pegar em um destes mimos que sinto ressurgirem velhas emoções. Olhe esta rosa de porcelana. É da época que me casei com teu pai. E esta corujinha! Lembro-me de ter ganhado de um professor, ainda na época do ginásio... Símbolo da sabedoria. Está vendo este bebezinho de gesso? Foi do seu aniversário de um ano. Quantas saudades... Todos foram momentos únicos para mim.
Ela fechou o armário, me agradeceu pelo presente mais uma vez, e passou pelo corredor, para voltar ao quarto. Ainda estava com um pouco de sono. Acho que devido aos problemas de saúde ela se refugiava ao armário sempre que quisesse reavivar algumas emoções que, naquelas condições, estavam por ser mortas. Mas em seu olhar melancólico, ainda havia salpicos de esperança.
- Mas, mamãe, por qual motivo você resolveu guardar este simples bibelô que eu trouxe dos campos?
Ela se virou para mim e disse, com ar um tanto eufórico:
- Mais um outono!